Embondeiro por Fernando Lusbelo

Leonor passara toda a sua infância revoltada contra o país que a viu nascer. Na sua infantil genuinidade, também esta revolta, esta raiva, saiam bem do seu âmago, bem do mais profundo do seu ser. Leonor nasceu em Angola, em meados dos anos setenta. Viu, sem saber ler nem escrever, os seus pais e os pais de tantos outros meninos e meninas serem despojados de toda uma vida, de tudo o que haviam construído de raiz num país que diziam ser também Portugal, mas que distava alguns milhares de quilómetros, e onde os horizontes eram distantes, a terra era vermelha e as árvores parecia terem nascido de pernas para o ar, ou melhor, de raízes para o ar – os imponentes e maravilhosos Embondeiros. Tudo o que interessava a Leonor saber naqueles tempos, era aquela, que para ela era uma verdade insofismável! – Angola tratara mal aqueles que tanto a amavam. O coração de Leonor sentia-se impotente para perdoar tamanha maldade, tamanha injustiça. Leonor era pequenina demais para perceber que a culpa não era daquele enorme país, mas sim da mesquinhez e ganância dos Homens, ganância pelo poder a todo o custo. Cresceu numa infância ausente de pai, porque mais uma vez, África, agora ela transportava já a sua crescente raiva para todo o continente africano, lhe subtraía a presença de seu pai, que nunca se adaptou à metrópole. Parecia correr-lhe nas veias sangue africano, embora nascido fosse numa aldeia de Trás-os-Montes. Qualquer referência da mãe, ou do pai aquando das suas rotações por Portugal, a um possível regresso a Angola se a situação estabilizasse, produzia em Leonor um turbilhão de sentimentos dos quais o mais positivo seria a revolta, a incompreensão! Como poderiam os seus pais, depois de tudo o que aquele país lhes causara, ainda quererem voltar. Leonor habituara-se a ouvir que Angola era mágica, e que quem bebeu a água do Bengo nunca mais se conseguiria libertar dessa magia. Mas para ela, tudo, todo o seu sentimento por aquele país permanecia imutável ou, em última análise, em crescendo de raiva. Fazia-lhe mal, revolvia-lhe o estômago, principalmente naquela fase da adolescência, o facto de sequer se equacionar um regresso, ainda mais agora que finalmente tinham conseguido alugar um pequenino apartamento e que ela já tinha os seus amigos, não podia pensar em perder tudo isso. Acompanhava os pais a uns encontros, que muitos diziam de forma pejorativa, de retornados, e detestava. Essa era também uma revolta de Leonor, como poderia ela ser rotulada de retornada se tinha nascido em Angola e a primeira vez que pisou solo da metrópole foi naquele fatídico ano de 1976! Leonor começava a perceber também como muitas pessoas podiam ser tão pequenas de espírito. Mais tarde, viria a responder a essa pequenez com uma frase de Fernando Pessoa: “porque eu sou do tamanho do que vejo e não do tamanho da minha altura”, e Leonor via em grande, em grandeza de alma.
A determinada altura do seu processo de crescimento, Leonor deparou-se interiormente com uma questão que a exaltava: porque seria que tanta gente, e não só seus pais e familiares, nutriam um amor tão imenso por aquele país!? Agora, a raiva que se tinha acomodado sem pedir licença no seu coração, vacilava. Ou melhor, pela primeira vez não a ruborizava nem lhe trazia lágrimas aos olhos, lágrimas essas que ainda hoje verte sempre que vê imagens sobre a descolonização, não – pela primeira vez, de uma forma mais ou menos pacífica Leonor se questionava sobre o assunto. Tomou então uma decisão, veiculada por aquele sentimento corrosivo que tantos anos carregara dentro de si – tinha de ir sentir in loco. Ela tinha de ir a Angola! Não seria de ignorar tamanho sinal que saía de dentro de si, ela sentia que, assim que pisasse a Terra da terra vermelha, todas as respostas que buscava lhe surgiriam naturalmente.
Envidou todos os esforços no sentido de tornar realidade a sua determinação, aquele que se tinha tornado em pouco tempo o seu maior sonho, a sua maior ambição – conhecer o país que a viu nascer mas que não lhe deu a possibilidade de lá crescer – ou talvez, e melhor dizendo, que não teve a oportunidade de a ver crescer. Muitas burocracias precisariam de ser ultrapassadas, mas em virtude do seu pai ter conseguido obter numa das suas viagens à cidade onde viviam, uma certidão de nascimento que depois de devidamente autenticada pelas entidades competentes lhe foi valiosa para a obtenção do passaporte Angolano com o qual arrepiaria caminho no processo de preparação da viagem. O motor para toda esta entrega ao seu sonho era aquela raiva que, ainda que agora sentida de uma outra forma, não deixara ainda de ser raiva, e Leonor sorria ao pensar como um sentimento tão negativo podia dar origem a algo tão positivo! Mesmo que desta viagem Leonor trouxesse apenas certezas para a sua raiva, ainda assim teria valido a pena, porque teria uma maior base de sustentação para o próprio sentimento.
Naquele dia, Leonor que não tinha o menor medo de andar de avião, sentia uma náusea apoderar-se do seu interior, sentia que o seu coração batia a trote, camuflado por uma aparente calma, sua companheira arma de defesa de toda a vida. Só Deus, e ela própria sabiam tudo o que se passava dentro dela.
Aterrou no 4 de Fevereiro, aeroporto de Luanda, naquela madrugada de Abril. Com ela levava um sem número de recomendações – tem cuidado, não andes sozinha, não bebas água que não seja engarrafada, enfim… entre tantas outras do género. À sua espera um grande amigo e aquele que seria o seu suporte logístico, e não só, nesta sua “aventura”, Rodrigo, um grande amigo angolano. Depois dos cumprimentos efusivos e saudosos, dirigiram-se à saída, entraram no jipe e atravessaram uma cidade caótica e selvática, enquanto Rodrigo lhe ia dizendo que Angola não era Luanda para que ela não entrasse em pânico.
Mas Leonor já tinha percebido. Assim que pisara aquela terra, assim que respirou fundo aquela atmosfera, assim que perdeu os sentidos naquele horizonte, Leonor percebeu. E quando, na manhã seguinte fez a sua primeira incursão pela beleza natural, quando sentiu o cheiro e a pele arrepiar-se, quando viu aquele nascer do sol, foi como se o Sol nascesse dentro dela, e o sorriso daquelas crianças com tão pouco, transformou por fim o que restava da raiva em Amor. Amor do mais puro à sua terra!


[2011/01/16]

9 Responses to "Minha terra [raiva]"

  1. João Roque Says:

    Muito bom.
    Presumo que sejas a autora e até presumo algo mais, mas como não sei as tuas raízes, não digo nada.
    Beijinho.

  2. Cláudio Says:

    Como entendo tão bem esta história...

  3. Unknown Says:

    Pinguim,

    És da casa e livre de presumir o que quer que seja :) Sou sim a autora, respondendo a um desafio da "fábrica de histórias" Muito obrigada, digamos que é um texto de ficção baseado em alguns factos reais :)

    Beijinhos

  4. Unknown Says:

    Cláudio,

    ... como te entendo... :)

    Beijinho

  5. Lusbelo Says:

    ;)

    Conheço bem esse sonho... Por duas vezes o sonhei, por duas vezes o vivi e das duas vezes o acordar foi violento! Mas isso não me impede de ter vontade de o voltar a sonhar...

    Bjsssss

  6. Unknown Says:

    Fernando,

    Conheço bem a "história" e daí falar nesta magia africana. Apesar de tantas e tão duras adversidades... o bichinho está lá :)

    Beijos x 2

  7. Butterfly Says:

    Este comentário foi removido pelo autor.

  8. Butterfly Says:

    Muito bonito o teu texto Natacha!

    Parabéns!

    Beijinhos

    magnolia

  9. Unknown Says:

    Muito obrigada Magnólia! :)
    É um misto de realidade e ficção ;)

    Beijinhos

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