Crónica para ser lida com acompanhamento de 'kissange'
Porque é que o lugar mais belo que se recorda é o mais belo? Onde está o segredo da sua conquista? Talvez na proximidade com a felicidade ou no dom que possui a sua evocacão para ajudar a atravessar os momentos difíceis. E pode estar no despertar e adormecer de um oceano de girassóis. No descobrimento da beleza, da satisfacão e da alegría no meio da miséria e do horror.
O mais belo que vi até hoje não foi um quadro, nem um monumento, nem uma cidade, nem uma mulher, nem a pastorzinha de porcelana da minha avó Eva quando era pequeno, nem o mar, nem o terceiro minuto da aurora de que falam os poetas: o mais belo que vi até hoje foram vinte mil hectares de girassol na Baixa do Cassanje, em Angola. Saíamos antes do amanhecer e com a chegada da luz, os girassóis levantavam a cabeça, ao mesmo tempo, para Oriente, e a terra enchia-se, por inteiro, de grandes pestanas amarelas nos dois lados do caminho e recordo, numa ocasião, um grupo de macacos numa ladeira, quietos, observando-nos. Depois, cansaram-se de nós e desapareceram sob a sombra dos arbustos.
O mais belo que vi até agora foi Angola e, apesar da miséria e do horror da guerra, continuo a querê-la com um amor que não se apaga. Amo o seu cheiro e amo as suas pessoas. Talvez os momentos que tive mais próximos daquilo a que se chama felicidade tenham acontecido quando assistia a partos e resolvía os problemas que as mulheres e o meu companheiro feiticeiro (euá Kimbanda!) não eram capazes de solucionar. Quando acabava, saía da enfermaría como se ainda tivesse nas minhas mãos uma pequena vida trémula e sentia-me feliz. As mangueiras, imensas, sussurravam sobre a minha cabeça, o senhor António espreitava da cantina. É engraçado: nos momentos difíceis, a memória da Baixa do Cassanje ajuda-me. Recordo o chefe Macau (euá Muata!), e digo a mim próprio:
- "Tumama tchituamoc", que significa, em síntese, senta-te e serena.
Se fosse à janela, decerto que avistaria, mesmo em Lisboa, vinte mil hectáres de girassóis, perdendo-se da vista, as pestanas amarelas, os macacos. A incrível beleza das raparigas, a sua pele tão suave, a tía Teresa, gorda, enorme, que dirigia uma casa de putas en Marimbá, e sabia muito mais sobre a nossa condição que qualquer outra pessoa que tenha conhecido.
Euá tía Teresa!
Euá os tambores"!, pela noite na povoação de Dala, a marijuana dos ritos funerarios (euá liamba!).
Conversava com a tía Teresa ao entardecer quando sentía saudades. Às vezes oferecia-me uma das suas criadas: nunca fui capaz de aceitar. Mandava trazer uma bacia com água, sabão, uma toalha, e ambos lavávamos solenemente a cara. Um día entregou-me um frasco com pó de talco, com o propósito de me proteger do mal. E talvez me tenha protegido. E comíamos juntos moamba, essa carne de galinha ou vaca guisada com azeite de palma: ela e o Kimbanda Kindele, ou seja o médico branco. Eu que tantas vezes, em África, tive vergonha de o ser. O meu corpo tão desengonçado. Aproximava o ouvido de uma árvore e não sabía, como a tía Teresa, quem estava a chegar. Mas o chefe Kaputo pediu-me que fosse padrinho do seu filho, a maior distinção que recebi até hoje: e, por educação, nada disse sobre a minha forma de dançar. Uma velha com a brasa do cigarro no interior da sua boca apertou os meus dedos com os seus
euá Velha!
Apertou os meus dedos outra vez: estou a escrever isto com uma grande alegría, a mesma com que aos domingos de manhã fumava cachimbo de mutopa com os homens, ouvia-os falar, jogava com eles a uma espécie de gamão com pedras e olhava a jangada a atravessar o río Kambo, já sob as sombras do crepúsculo, com as luzes de Chiquita à distância. Os girassóis inclinavam a cabeça para poder dormir, os insectos voavan contra os faróis do jipe, no caminho. A fazenda de tabaco do senhor Gaspar, com as suas caveiras de hipopótamo. O senhor Gaspar sorría no interior do bigode
euá senhor Gaspar!
Sentávamo-nos na varanda
-Tumama tchituamo
E o seu papagaio, entre gritos, fazia tilintar a candeia: dava medo a obscuridade. Ali vinha a criada com a água, o sabão, a toalha. No meio da miséria e do horror havía momentos de uma satisfação enorme. Uma paz como de santo que não voltei a encontrar. O que mais amo no mundo são os girassóis da Baixa do Cassanje e eu caminhando (voando) entre eles.
Euá Velha!
aperta os meus dedos outra vez.
António Lobo Antunes
Obrigada Gina, por um dia me ter enviado esta crónica!!
[2008/09/11]
11 de setembro de 2008 às 09:10 �
Por vezes chegam até nós coisas lindas que partilhamos com quem gostamos e até esquecemos, às vezes... e eis que anjos em forma de amigos nos trazem de volta a magia que havíamos esquecido e que tanta falta faz sobretudo em dias em que até o céu chora!!!
Um abraço bem apertado de alguém hoje com a sensibilidade à flor da pele. Gina
11 de setembro de 2008 às 22:19 �
... e somos duas!! Na parte da sensibilidade...
Será que a nós, as do IP, ainda nos é permitido ser sensíveis?? Às vezes penso que não... :S
Abraço, bem apertado e saudades muitas... dos dois ;)
12 de setembro de 2008 às 09:21 �
Há pelo menos uma situação em que matar pode ser um acto redentor...
porque não matá-las todas para o próximo mês???
Jinho.
Quanto à outra questão - é o que nos resta - ser como somos, e isso minha amiga NINGUÉM nos poderá tirar!Mais um beijinho. Gina
12 de setembro de 2008 às 12:31 �
Gina...
Eu estou lá!! É só dizer onde e a que horas devo chegar ;-))
Beijosssss
13 de setembro de 2008 às 22:47 �
Quem não gosta da sua terra natal, das suas raízes...
:)
14 de setembro de 2008 às 22:11 �
Eu estive, durante alguns anos, "de costas viradas" para Angola. Um não saber lidar com...
passou quando o meu pai lá voltou pela primeira vez após 30 e tal anos e trouxe fotos, talvez quando vi a campa do meu avô, a casa onde vivi... sei lá, não sei explicar, mas senti uma PAZ entre mim e Angola e vontade de a recompensar por tudo o que não lhe dei em anos de vida...
Enfim... agora sonho em voltar lá e estar com Ela e Nela...