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(*) "Automat" de Edward Hopper
Fim do dia - Mafalda Veiga
Perdi por completo a noção do tempo, apenas sei que o último comboio deixou já a estação e tu não chegaste, mais uma vez. Assim são os meus dias, todos os meus dias. Chego e o empregado já sabe o que me há-de servir. Com o tempo, o meu olhar foi-se fechando e num instante até a própria alma se foi consumindo. O entusiasmo dos primeiros dias, a ansiedade gritante que se derramava num sorriso radioso e se reflectia no olhar. O ânimo com que alegrava o café, cantarolando sempre bem disposta como se todo o Mundo me pudesse ouvir e desfrutar comigo da minha felicidade.
Felicidade que não demorou a apanhar, também ela, um comboio que passava sem rumo traçado.
Passaram semanas, mas eu não desisti. Alguns que conheciam a minha história olhavam-me com pena mas eu não os via e como tal isso não me trazia incómodo. Só deixamos que nos afectem as pessoas que têm alguma importância para nós, somos maiores que os olhares contristados dos que por dentro se riem do que entendem por ridículo. E eu, do alto de mim não quero nem saber. Nunca fui uma pessoa altiva, mas guardo o maior respeito pelas minhas emoções.
Hoje, de novo, entrei movida a esperança e sentei-me na mesa do costume. Penso que desde o primeiro dia que entrei no café aquela mesa não voltou a ser ocupada por alguém, que não eu. O empregado lá veio, com o chá do costume, com o sorriso do costume e até com o cabelo desalinhado do costume. Dirigiu-me as palavras do costume e eu sorri o sorriso apagado do costume. Agradeci com o "obrigada" do costume e ele despediu-se com o "disponha" de sempre.
Os meus movimentos eram já automatizados e já sabia de cor quais os comboios, horários e destinos que levavam ou traziam. Até se fazer silêncio na plataforma, o meu coração bombeava o sangue que me fervia nas veias e nem todos os passos do mundo me poderiam fazer mais feliz que aqueles que te trouxessem pela porta adentro. Mas, invariavelmente tu não chegavas e a noite apagava as pegadas que desejei perscrutar.
Um dia, sentar-me-ei nesta mesa fitando o chá que me observa, e não o contrário, e talvez no fundo da chávena se materializem as minhas emoções.
Como um observador atento, o dono do café vinha traçando um retrato de mim ao longo dos tempos. Creio poder ter sido um objecto de estudo interessante para quem se interessa pelas pessoas e pelas suas emoções. Eu deixo que as minhas vagueiem pelos traços do meu rosto e pelos movimentos do meu corpo.
Último dia, último comboio... o dono do café e o empregado do cabelo desalinhado dirigem-se a mim com algo nas mãos. Sorriem um sorriso puro, como se apenas eles entendessem os meus porquês. Pela primeira vez em semanas, sorri também eu um sorriso agradecido que me saiu cá do fundo do coração.
O último comboio acabava de arrancar da estação, era o fim. No dia seguinte a estação seria encerrada, a linha deixaria de ter movimento, e eu deixaria de frequentar o café onde durante semanas intermináveis esperei pelo teu regresso.
Tomei nas mãos o embrulho que me entregavam, abri-o ali mesmo. Lá dentro, um quadro de uma mulher, pensei reconhecer-me, tomando o seu chá na mesa de sempre do café de sempre, o café de todas as emoções. Aquela lágrima que nunca saiu dos meus olhos, cruzou a minha face marcada pela desilusão. Mas eu segui em frente, de coração mais cheio do que no primeiro dia que ali entrei...
... e tu não chegaste...
Escrito para: Fábrica de Histórias
[2012/02/05]
6 de fevereiro de 2012 às 17:05 �
Adorei, Natacha!Como sempre, muito inspirada!
Beijos
6 de fevereiro de 2012 às 21:48 �
que bonito...!
beijinhos
7 de fevereiro de 2012 às 10:21 �
Á vezes mais vale apanhar o último comboio e não esperar =)
Gostei muito como sabes!
beijinho
7 de fevereiro de 2012 às 11:15 �
Amiga, gostei muito. Um texto muito bonito, feito de frases que sabem ser simples para expressar o que, dentro de nós, sabe ser complexo.
beijinhos
7 de fevereiro de 2012 às 22:18 �
Fiquei sem palavras. Como comentar este post? Acho que não sei...está bom de mais.
Abraço
8 de fevereiro de 2012 às 12:24 �
Querida Ivete :) Como gosto de te ver... eu tenho andado afastado das leituras dos meus blogs de eleição, sou sincera, mas quero voltar breve breve ;)
Obrigada pelas tuas palavras e um beijinho grande...
8 de fevereiro de 2012 às 12:25 �
Ana,
Obrigada, linda... quero passar a ler-te em breve. Obrigada pelo convite ;)
Beijo
8 de fevereiro de 2012 às 12:26 �
T
Às vezes mais vale arriscar... eu arrisco até o ficar... ;)
Obrigada por gostares, e por tudo o mais...
Beijo grande
8 de fevereiro de 2012 às 12:27 �
Rita, obrigada amiga...
Não me tenho sentido muito inspirada, mas começo a escrever e deixo que sejam as palavras, ou as emoções, a conduzirem...
;) Obrigada
8 de fevereiro de 2012 às 12:28 �
Ónix :)
Só gostares, já é tatuagem mais que suficiente para me encher a alma... Obrigada :)
Beijo