Monet


Tristesse - Chopin


Era ali naquele atelier que se perdia em pensamentos e recordações. Lord Henry, agora sexagenário, tinha vivido, e na verdade continuava a viver, uma vida muito intensa. Fora um homem bonito de figura atlética, muito disputado pelas mulheres mas sempre imensamente protegido por sua mãe até à morte desta, não há muitos anos. Quem olhasse para ele agora, poderia ainda afirmar que se tratava de um homem bonito, por detrás da tez amarelada que os anos a fio de fumador lhe tinham deixado por marca.
Foi à janela, e num longo respirar fundo encheu os pulmões dos aromas que exalavam daquele jardim que mais parecia um verdadeiro quadro inspirado nos famosos jardins de Monet.
Pelo jardim, corriam os netos de Lord Henry, numa alegria que lhe fazia brilhar os olhos. Ele próprio costumava acompanhá-los nas brincadeiras e quando olhava bem no fundo da alma do seu neto mais novo, Sebastian, revia-se a si próprio no auge da sua irreverência, a possível tendo em conta a protecção excessiva de sua mãe.

Mais um cigarro, e a sua memória continuava a divagar pelos tempos mais remotos. Lembrou com carinho o seu primeiro e grande amor. Um amor impossível, completamente reprimido pela intolerância maternal. Não passaria pela cabeça de Lady Grace permitir que seu filho varão se perdesse de amores pela filha do jardineiro Joseph. E Lord Henry era demasiado obediente para sequer equacionar enfrentar a sua mãe e toda a sociedade castradora que os envolvia. E assim, após uns olhares profundos trocados e uma mão que se encontrou com a dela, quando ele se preparava para declarar o seu amor a Margareth, a mãe apareceu calmamente no roseiral para apenas lhe dizer duas palavras, não se dando ao trabalho de sequer olhar para a pobre Margareth que entretanto parecia ter sumido pelo chão adentro. E essas palavras foram: “Para casa!”, ditas de uma forma que não permitia qualquer argumento. Apenas deu tempo para que ele olhasse com pesar nos olhos dela e ambos perceberam nesse instante que o fim chegara mesmo antes do início daquele Amor.

A vida foi desenrolando, Margareth ausentou-se da vila para estudar e Lord Henry nunca mais a viu, mas nunca a esqueceu. Ele próprio foi estudar na capital e quando voltou a casa era já um arquitecto com um gosto especial pela pintura, noivo de Lady Isabella que lhe havia sido apresentada por sua mãe que aproveitou a ocasião para frisar bem o quanto seria de seu agrado se formassem um casal, já que Lady Isabella provinha de uma família tradicional muito conceituada na sociedade e com excelentes capacidades intelectuais, já que havia estudado Literatura.

Henry e Isabella davam-se bem, eram novos, inteligentes, bonitos. As conversas entre os dois eram sempre bastante elevadas e partilhavam o gosto pelo que é bonito, pela arte nas suas mais variadas formas e manifestações, nunca desprezavam o que lhes pudesse proporcionar um maior crescimento artístico. Henry mais na pintura, onde possuía já um vasto leque de quadros que compunham a sua colecção particular, e Isabella na escrita, onde se tinha tornado conhecida pelos belíssimos poemas que escrevia, inspirada pelos jardins maravilhosos, pelo marido que a estimava e respeitava, enfim, pela felicidade que vivia. Outro dos pontos importantes era o facto de Lady Grace apreciar imenso a sua nora de tal maneira que pouco se imiscuía na vida do casal, preferindo manter uma atitude mais de observadora, o que, em última análise, era essencial para o sucesso de qualquer relação de seu filho.

Porém, na realidade, Henry nunca amara verdadeiramente a sua esposa. Sim, gostava dela, sim, respeitava-a enquanto mulher, enquanto mãe entretanto já de 3 filhos, existia um amor fraternal que permitia a sã convivência, a tranquilidade. Mas Henry não tinha nunca esquecido Margareth nem o calor que lhe subia ao peito sempre que a via e que nunca tinha sentido por Isabella. Faltava o fogo de que ele tanto necessitava, faltava levantar vôo e pairar, no entanto sentia com o passar dos anos, enquanto via os seus lindos filhos crescerem naqueles mesmos jardins, de que já não ia a tempo de voltar a sentir algo assim.

Henry envelhecia a cada cigarro que fumava. Isabella contraiu uma doença fatal que a levou em poucos meses e ele viu-se só, aos 55 anos. Por essa altura já os filhos eram crescidos e tinham seguido as suas vidas, só Beatrice, a mais nova, terminava ainda o seu curso Universitário, iria ser uma brilhante, nas palavras de seu pai, advogada. Lady Grace, então perto dos 80, voltou ao seu papel de “cuidadora” e Henry, desgastado com toda a situação viu-se sem forças para rebater o que quer que fosse. Sentia-se cansado, cansado de uma vida intensa e no entanto sem a essência com que ele tanto sonhara. Deixou-se ficar assim, prostrado, completamente manipulado pela mãe. Deixou o escritório de arquitectos onde trabalhava, quase abandonou o seu hobby pela pintura, que a mãe, que entretanto faleceu durante o sono numa quente noite de verão,  tanto criticava, enfim, desistiu de viver, até um dia…

Estava uma linda tarde de início de Outono. O Sol já fraco dourava a paisagem, ele passeava junto ao rio com Sebastian que ia na bicicleta muito animado no alto dos seus 9 anos. Henry fumava, infelizmente esse era um dos hábitos do qual ele não se livrara e que se manifestava notoriamente na sua imagem de aparência envelhecida como as folhas que agora caiam das árvores, caducas.
Foi ali que Henry a viu e não teve dúvidas. Era mesmo Margareth. Os anos haviam passado mas a sua memória afectiva permitiu-lhe reconhecer aquele que foi o seu grande amor. Hesitou por instantes. Ela estava sentada a ler um livro num banco de jardim virado para o rio. Estavam já perto da entrada para a propriedade e Henry sugeriu ao neto que fosse andando para casa, ele já lá iria ter. Sebastian, obediente, assim fez sem questionar o que quer que fosse.

- Margareth! Exclamou, num tom entre o firme e o nervoso, produto de toda a ansiedade que sentia dentro de si.
Margareth, levantou os olhos do livro que estava a ler e fixou o olhar de Henry.
- Henry! Henry, és mesmo tu!?
- Já não me reconheces? Eu, mal te vi lá de longe percebi que eras tu aqui sentada. A mesma silhueta, a mesma aura que paira sobre ti…
- Oh Henry, mas estás tão mudado…
- Velho, queres tu dizer…
- Velhos estamos os dois, disse ela sorrindo, tinha menos cinco anos que ele mas aparentava pelo menos uns vinte.

Foram dar um passeio pelas margens do rio e no espaço de tempo de cerca de duas horas puseram-se ao corrente de todos os acontecimentos. Margareth nunca casara, disse-lhe que jamais o tinha conseguido esquecer, que nunca mais tinha conseguido interessar-se por alguém e que isso, não só mas também, a tinha levado a ingressar um convento por muitos anos. Regressou a casa para cuidar de seu pai, Joseph que entretanto adoecera. Henry nunca mais tinha sabido de Joseph desde que este se reformara no ano anterior.
No fim do passeio Henry confidenciou a Margareth que também nunca a tinha esquecido, apesar de ter constituído família, que na verdade ela esteve sempre presente dentro dele. Ficaram ali assim, os dois, hoje ele com 62 anos e ela com 56, parecendo dois jovens adultos num reencontro tão esperado.
Henry pediu-lhe perdão por não ter sido capaz de enfrentar a sua mãe e lutar por aquele amor, ela mostrou-se compreensiva e com um olhar doce acrescentou: “Nunca é tarde para o amor…
E ali mesmo, trocaram um beijo envolvido de abraço e naquele instante, Henry recuperou trinta anos ou mais e sentiu-se como um jovem em início de vida. Nada podia alterar os traços vincados de seu rosto e a sua tez amarelada, mas a sua alma estava completamente rejuvenescida com aquele encontro e hoje tinha a certeza:
- Vamos ser felizes para sempre, minha querida Margareth!
- Vamos sim, respondeu-lhe com o olhar iluminado.

"Por todo o atelier pairava o aroma intenso das rosas e quando a branda aragem estival corria por entre as árvores do jardim, entrava pela porta a fragrância carregada do lilás, ou ainda o perfume delicado do espinheiro de floração rósea. Estendido no divã de bolsas de seda persas, a fumar, como era seu costume, cigarro após cigarro, Lord Henry Wotton só conseguia vislumbrar do seu canto as flores adocicadas e cor de mel de um laburno, cujos ramos trémulos pareciam mal poder suportar o peso de beleza tão fulgurante." *

Henry pintava a que viria a ser a sua última obra e sorria às suas lembranças. Margareth, ao piano, naquele atelier perfumado numa mescla entre o floral e o óleo das tintas. Após este quadro, Henry pretendia dedicar-se em exclusivo ao usufruto da sua juventude ao lado de Margareth…

Escrito para: Fábrica de Histórias


* "O retrato de Dorian Gray" . Oscar Wilde


[2011/09/25]
Posted by Picasa

8 Responses to "Rejuvenescer..."

  1. T. Says:

    Gostei bastante =) A introdução do excerto no fim foi genial...Muito bom.

  2. Unknown Says:

    Olá Tiago!

    Muito obrigada pela tua tatuagem :)Temi que o texto estivesse um pouco confuso, mas fico feliz que tenhas gostado. já percebi que não participaste esta semana, mas nós esperamos por ti ;)

  3. sgar Says:

    Esta tua história, bem desenvolvida, dava um conto! Estavas inspirada, e que bom ser o amor a rejuvenescer-nos :) beijinhos

  4. Unknown Says:

    Sónia, acredita que comecei a escrever e só parei no fim :D Saíu assim tudo ao correr da pena, como eu gosto. Temi que estivesse confuso mas fico contente que tenham gostado :) Vou já já espreitar o teu closet ;)

    beijinhos

    PS- Ah... e nada como uma amor para nos rejuvenescer ;)

  5. ónix Says:

    Gostei muito da tua história...o retrato puro da nossa sociedade cheia de preconceitos e maledicência.
    Enfim, é o que temos.
    Abraço

  6. Ametista Says:

    Querida Natacha, consegui entrar nos cenários e imaginei cada momento.. infelizmente, o tema da história retrata uma realidade que ainda não se extinguiu por completo..
    Adorei :)

    Beijinho enorme

  7. Unknown Says:

    Ónix, quero acreditar que estamos já alguns passos à frente do que retrato neste texto :) Mas tens razão, a nossa sociedade ainda é muito assim e eu existo todos os dias para contribuir para a mudar :)

    Beijo

  8. Unknown Says:

    Pois não Leonor, em muitos sectores ainda será assim, a perfeição não existe mesmo. Mas continuo a achar que o Amor pode tudo e vence tudo... pronto... deixem-me continuar a sonhar ;)

    Beijinhos grandes

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