- Avó, avó!!

Lá vinha o Joãozinho a correr até à cozinha onde a avó Gertrudes preparava carinhosamente os pastéis de arroz que ele tanto gostava, aproveitando o que havia sobrado do arroz do almoço.
João era um menino doce de 10 anos de idade que adorava passar as férias da escola na casa da avó, na aldeia. Habituado ao ritmo citadino, aquele ar do campo, e as óbvias diferenças nas rotinas, nos cheiros, nos sabores, deslumbravam-no.

- Então João, o que te traz nessa correria? – Perguntou divertida a avó. Como gostava de ter aquele seu neto junto de si, era como recuar no tempo e voltar a ser também um pouco criança, novamente.
- Avó, olha o que eu descobri naquela arca que está no sótão, por debaixo da janela!
E o pequeno João acenava numa euforia incontida uma fotografia que a avó não conseguiu à primeira vista descortinar de que se tratava.
- Pára, meu filho, que assim a avozinha não consegue ver o que tens aí. Ora mostra-me lá.

E o Joãozinho entregou aquela relíquia nas mãos de sua avó, que olhando com atenção, logo esboçou um sorriso, perdendo de imediato o olhar no véu das lembranças.


- Então avó, conta-me! Conta-me sobre esta fotografia e quem são essas pessoas. Foi num carnaval?

Na verdade, naquele momento, a voz de João não era mais que um eco, a avó estava longe, mergulhada em memórias. Mas foi subitamente interrompida por um grito mais vibrante do seu neto.

- Oh avó! Fala comigo! Acorda!
Gertrudes riu-se e enquanto pegava na latinha dos biscoitos de manteiga que tinha sempre que o neto lá estava, disse-lhe: - Vamos para a sala, meu filho, vou contar-te a história desta fotografia.
 E assim foi. Dirigiram-se à sala, onde o lume na velha lareira não parava de engolir lenha naquela fria tarde de Fevereiro, e sentaram-se no velhinho, mas confortável, sofá, proporcionando uma ternurenta imagem de neto e avó, que só por si daria também uma excelente fotografia, para a posteridade.
João, abriu a lata e retirou o primeiro biscoito, enquanto de olhos arregalados esperava que a avó começasse a relatar-lhe a história daquela fotografia. Como ele adorava ouvir as histórias da avó. E a avó Gertrudes começou:
- Sabes meu filho, há muitos anos atrás, quando o teu pai tinha mais ou menos a tua idade; imaginas isso? – Interrompeu, lançando um olhar maroto e divertido ao seu menino, que lhe esboçou um sorriso enorme e lhe respondeu docemente: - então avó… já foi há muito tempo, foi noutro século – e riram os dois.
-Pois foi meu filho, mas como eu te ia a dizer, naquela altura aqui na aldeia, nem todos os meninos estudavam na escola porque muitos tinham já de ajudar os seus pais no sustento da casa e muitas das meninas iam servir para casa dos senhores mais abastados, não podendo assim ir aprender as letras e os números.

João olhava para a avó num misto de excitação e incredulidade, enquanto a avó prosseguia.

- Mas nós tínhamos a sorte de servir na casa de uns senhores muito bons, muito ricos, mas muito bons. Eu e a tua tia na lida da casa, uma enorme herdade, que tu conheces, é aquela que fica ali a caminho da escola primária – e João acenava que sim com a cabeça – e o teu avô que Deus tem, cuidava dos animais e da quinta, bem como conduzia o automóvel do Sr. Cordeiro sempre que ele tinha de ir à cidade. Como tal, éramos bastante protegidos, e o teu pai era tratado como filho dos senhores, que por infortúnio não puderam ter os seus próprios filhos, e por isso estudou, teve essa oportunidade – sabes que o teu pai tem uma grande diferença de idade para a tua tia, eu e o avô já fomos uns pais velhos para ele.
Esta fotografia foi tirada precisamente na escola, num Carnaval longínquo. O teu pai é aquele ali, vestido de engraxador, os outros eram colegas de escola, menos aquele ali mais pequenino que era o filho da Sra. Professora Lídia. Apesar de ter a possibilidade de ter um fato de carnaval importado, oferecido pelos senhores, o teu pai preferiu que eu lhe costurasse o fato com restos de tecidos de roupas já esgaçadas do teu avô, e assim o fiz. E escolheu o de engraxador porque admirava, sempre que por ele passava, o brio com que o José, seu amiguinho, um daqueles que não tinha a possibilidade de estudar, empunhava a escova e puxava o lustro aos sapatos dos Doutores, lá perto da barbearia, na praça da aldeia, para ajudar a colocar pão na mesa de sua mãe que enviuvara recentemente.

Enquanto a avó discorria as suas lembranças, Joãozinho fazia o filme na retina da sua imaginação. De repente, o sorriso de João perdeu-se, e o olhar entristeceu.

- Então, meu filho? O que aconteceu, porque ficaste tão triste de repente?
- Avó, replicou num lamento o pequeno, eu costumo pedir sempre à minha mãe que no carnaval me compre a fantasia mais bonita que há nas lojas, para que os meus amigos fiquem de boca aberta a olhar para mim. Oh avó, mas isso não é muito certo, pois não?
- Meu querido, retorquiu a avó numa voz doce, é natural que isso aconteça, não é o que fazem todos os teus amiguinhos? Os tempos são outros, as modas também. Agora os meninos fantasiam-se de coisas-que-não-há, o carnaval tornou-se símbolo de fantasia, mas também de soberba.
- Mas avó, aquele senhor que costuma estar a engraxar sapatos lá na praça da aldeia ainda é o mesmo José, amigo do meu pai?
- É sim, meu filho.
- Parece tão mais velho que o meu pai… disse João numa voz arrastada de quem sentia o peso da vida daquele homem.
- Pois é, sabes que a vida na aldeia é diferente, e o tempo também corre de maneira diferente.
- Sabes avó, eu gostava muito de ser um engraxador neste carnaval!, Achas que me podias costurar um fato?
- Posso fazer melhor, respondeu entusiasmada a avó enquanto de um salto se levantava do sofá. Se procurares bem, dentro do mesmo baú onde encontraste esta fotografia, vais encontrar o fato do teu pai, vai lá ver – e João saiu disparado na ânsia de encontrar mais uma relíquia, voltando passado alguns minutos com aquela que tinha sido a fantasia de Carnaval de seu pai, engraxador.
- Obrigado, avó! E a avó sorriu com os lábios, os olhos e o coração...

Voltou à cidade, e a casa, e à escola, e no dia de Carnaval, exibia orgulhosamente a fantasia que não simbolizava nenhum super poder, nenhuma riqueza, antes a hombridade de uma profissão que na cidade pouco se vê, mas que para ele muito significava. Ganhou um prémio pela originalidade, no meio de muitos Zorros, Super-homens e Homens-aranha que não escondiam a surpresa por aquela escolha de João.


[2011/03/06]

14 Responses to "O Engraxador [Palavras para uma imagem]"

  1. João Roque Says:

    Uma maravilhosa história "de Carnaval"...

  2. Unknown Says:

    Que bom que gostaste Pinguim :))

    Beijinho

  3. Ana "Strobe" Mendes Says:

    Gostei muito da tua história, um poder moral muito forte...:)
    Parabéns.

  4. Unknown Says:

    Obrigada, Ana :))

    Pala passagem e tatuagem!

    Beijinho

  5. ónix Says:

    Uma bela lição de vida, Natacha, escrita com aquela sensibilidade que te caracteriza.
    Beijinhos

  6. Unknown Says:

    Que bom que gostaste!Obrigada, Ónix :)

    Beijinhos

  7. minalopes Says:

    Oi!
    Gostei, da história, corri todos os passos, pareceu-me ver o neto e avó, exactamente.
    Escrita simples, mas que teve o poder de me reter.
    Parabéns.
    Herminia

  8. Unknown Says:

    Herminia,

    Muito obrigada pelas simpáticas palavras. Esse é, de facto o meu objectivo, escrever de forma simples, porque tudo o que tem realmente força, é simples... nós é que complicamos :)

    Um beijinho e volta sempre

  9. Cláudio Says:

    A tua forma de escrever já não é surpresa e aqui está mais um texto «daqueles»! Um dia fazes um desafio a ti mesma, que é tentar escrever algo que as pessoas não gostem! :)
    Este texto dá-nos uma perspectiva da vida, muito mais interessante, uma boa lição.
    p.s Gostei de ver os diálogos «quebrando» a narrativa ;)

  10. Unknown Says:

    Torna-se repetitivo, mas não posso deixar de agradecer a tua simpatia, Cláudio.

    As tuas palavras são sempre um incentivo enorme!
    Sabes, muitas vezes não fico muito satisfeita com o resultado da minha escrita :)mas parece que aos olhos dos outros até nem está mal (risos).
    Por outro lado, não faz de facto o meu género incluir o diálogo nos meus textos, mas penso que no âmbito dos desafios da Fábrica, se tornam pertinentes :)

  11. Ametista Says:

    Olá, Natacha
    Consegui entrar na história e imagino cada momento.. fez-me lembrar as histórias do tempo da minha avó e que ainda hoje conta, a mim e às minhas irmãs.. adoramos ouvi-la..
    Na tua história está contida uma grande e maravilhosa mensagem..
    Simplesmente adorável..

    Um grande beijinho :)

  12. Unknown Says:

    Olá Ametista,

    E que falta senti de ler uma história tua acerca desta foto :) mas nem sempre dá, né?

    Hoje vou começar lendo as participações desta semana e a deixar as minhas tatuagens :)

    Beijo grande e obrigada

  13. Ivete Says:

    Natacha, não pude deixar de ler , não só a tua história como os comentários á ela.E sabes,é nas escolhas que parecem as mais simples,que residem as coisas mais belas.
    Tua história é sim uma pequena lição de vida.São histórias assim que vão fazendo a diferença. Quanto aos diálogos, ficaram muito agradáveis e fizeram com que se viajasse através deles.
    Parabéns!

  14. Unknown Says:

    Olá Ivete,

    Também é muito bom ver-te por aqui. tenho também de agradecer as tuas simpáticas palavras. A minha participação na fábrica surgiu pelo prazer de escrever,claro, mas também pelo desafio de tentar superar-me e embora ache que mantenho o meu "género", acabo por quebrar um pouco arriscando outros registos onde não estou tão à vontade... mas tudo pelo prazer de escrever :)

    Um beijinho

Enviar um comentário