Mónica Ferraz - Golden Days

Amanhecia o mesmo dia difícil de todos os dias, a rotina instalada, o automatismo dos movimentos, das acções.
Do mundo dos sonhos já nada restava, a realidade era a que se apresentava. Cara fechada, pensamento distante, olhar vazio e ausente. O pequeno almoço, fonte de energia, não era mais que a obrigação que me permitia aguentar-me em pé um dia inteiro de trabalho, e não digo em pé na verdadeira acepção da palavra, pois até trabalho sentado. Já sabia como acabaria o meu dia, e a dor era já demasiado forte para querer que o meu dia acabasse, as coisas são mais lentas do que desejava. Estou farto!

Desde o dia do acidente, desde que percebi que o meu sonho de vir a ser piloto nunca passaria de um sonho, a vida perdeu a cor e perdeu o sentido. Desejei tanto que terminasse ali a minha história, não ter de enfrentar mais nada, não viver para assistir ao fracasso, à discriminação. Foram tempos muito complicados que só com a persistência e paciência da minha namorada, Verónica, eu consegui ultrapassar. Ela nem se zangou pelo facto de eu estar a ser egoísta ao ponto de querer morrer e deixá-la sozinha, antes pelo contrário, disse-me olhando-me nos olhos com aquele olhar só dela, de que estaria sempre ao meu lado e que juntos íamos acabar por transpor todas as barreiras que hoje se afiguravam intransponíveis.

Nesse dia, mais um um, que acordou vestido de cinzento, um cinzento que só eu via, porque na realidade parecia que reconhecia um resto de Sol entrando pela janela, Verónica chegou, enérgica como sempre, acabada de regressar do seu jogging matinal, suando energia por todos os poros da sua pele e lançando-me o sorriso mais bonito que alguma vez pude receber.
- Então, meu amor, vamos?
- Vamos sim, era impossível não retribuir o sorriso. No entanto, estava bem ciente de que não conseguia retribuir a mesma intensidade, a mesma verdade que parecia viver em Verónica.

Ela era, sem sombra de dúvida o meu motor. Na verdade os momentos mais difíceis são já parte da nossa história, voltei a andar após muitas sessões de fisioterapia. Estava já bem mais motivado com este avanço e ainda assim me sentia insatisfeito. No ginásio, ao fim do dia de trabalho, deu-se o derradeiro baque em mim quando me queixei das dores que sentia nas pernas com raiva, dando um murro no colchão onde me encontrava. Aproximou-se de mim um outro rapaz, numa cadeira de rodas. Sorriu-me e piscou-me o olho enquanto me disse: "Ainda bem que te doiem as pernas, é sinal de qe tens pernas"
Olhei para ele, e fiquei sem saber o que dizer. Passou-me a raiva, passou-me o medo, passou-me o cansaço. Devagar, porque os meus movimentos ainda não eram seguros, aproximei-me dele, sem palavras abracei-o com as lágrimas a correrem no meu rosto. Apenas consegui balbuciar um "Muito obrigado. Acordaste-me!"

Carlos não estava zangado ou triste, e todos os dias eu o via no ginásio a lutar arduamente por uma vitória a cada nova batalha, nunca lhe ouvira um queixume. Carlos tinha sido amputado das duas pernas e agora procurava fortalecer-se de forma a que lhe pudessem ser aplicadas duas próteses. Carlos tinha perdido as duas pernas num acidente de trabalho na construção civil. Carlos fez-me perceber a minha pequenez com uma frase tão simples e eu só podia agradecer aquele murro no estômago.

Desde o dia do meu acidente de mota, enquanto acelerava orgulhoso a minha potente mota, destemido e irresponsável, a vida perdeu o sentido para mim. Desde o dia em que percebi que apesar dos pesares eu tinha muita sorte pois estava inteiro e principalmente vivo, a vida ganhou um novo sentido. E isso eu devo-o a duas pessoas: Verónica e Carlos.

Para SEMPRE!

Escrito para: Fábrica de Histórias

"Dê a quem você ama, asas para voar, raízes para voltar e motivos para ficar" 
Dalai Lama


[2012/01/09]
Posted by Picasa

2 Responses to "Razões para acreditar"

  1. T Says:

    Melhor seria impossível...Um tema sensível mas que mostra que ás vezes há sorte dentro do azar...

    beijo

  2. Unknown Says:

    É isso T, há que tentar sempre ver o lado positivo. Nem sempre é fácil, mas há que tentar... eventualmente acabaremos por nos convencermos ;)

    Beijinhos e obrigada pela tatuagem...

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