Shadow on the wall - Brandi Carlile

"Minha Amada,
Ouve, é a minha alma que te escreve. Este papel esconde a minha vergonha, mas também será ele que, finalmente, me revelará perante ti. (...) Sempre tivera medo que desestabilizassem a minha tristeza, acreditava que nela estavam a minha paz e a minha segurança, por isso me conformei, contente, com o que a vida me entregou. (...)

Devo confessar-to. Continuo a ter medo. Mas este é um medo diferente. Fizeste-me ter consciência dos meus vazios; contigo, iniciei uma procura interior que não pára de ferver dentro de mim e para a qual não estou sequer certo de encontrar uma solução. Mas comecei a andar. Garanto-te que a minha alma é melhor do que eu, porque a pressinto limpa e nova para ti. Espero que não seja demasiado tarde. Nas minhas tantas noites de insónia, o céu ensinou-me que há um momento em que o muito tarde se pode tornar, para nós, em muito cedo. É apenas um instante que se apaga e acende numa suave centelha; quando a noite agoniza nos braços do primeiro raio de luz nascente. Espero que este seja esse momento.

Minha amada Estrella. Sou casado. Há dezoito anos decidi partilhar a minha vida com uma mulher maravilhosa que julguei amar com loucura. Os nossos dias foram-se congelando entre as neves do silêncio e hoje, com dor, verifiquei que sobrevivi ao frio da nossa relação aquecendo-me nos restos de gestos que restavam dos nossos primeiros anos. Contraí com ela um compromisso de amor eterno que hoje me deixa imobilizado em relação a ti porque, sabes?, nestes dias de reflexão profunda, dei-me conta de que quanto mais fiéis somos a nós próprios, mais infiéis podemos acabar por ser aos outros. (...) 
Fui educado na fria contenção, na responsabilidade e no bom comportamento, embora à custa de sacrificar os meus sentimentos mais sensíveis, porque tens que saber, amada Estrella, que a sensibilidade não é uma qualidade que pertence apenas às mulheres. Hoje, confesso-te, não me envergonha verificar que sou um ser sensível. Durante toda a minha vida, os meus sentimentos mais íntimos estiveram a procurar vias de escape para esconder ou libertar as minhas dores e prantos. Graças a ti, nestes dias recuperei, ainda às escondidas, as minhas lágrimas.

Tive um pai que não descansou enquanto não julgou ter castrado a totalidade dos meus sentires, transformando-me num homem de bem - um verdadeiro orgulho para a sua masculinidade - fazendo-me um infeliz. Não o culpo; à sua maneira, pensava que me estava a dar o melhor que tinha. No fundo, somos todos o produto das educações recebidas pelos nossos antepassados, e a mim coube-me como herança a contenção do meu sentir. Durante anos, vivi seco; sedento de vida e seiva que, compreendo agora, só podem sorver-se sentindo a vida com plenitude, lutando por satisfazer os desejos. Isto, que parece simples, ignorava-o até que te conheci.(...)

Deste-me asas e alegria; vontade de rir e chorar. Provocaste um renascimento que fez florir os meus dias vazios. Agora, quero aprender tantas coisas, só para tas ensinar... analiso os pores do sol e as fases lunares. Recolho as folhas caídas das árvores e observo a perfeição da sua estrutura. Descubro o voo das gaivotas e o canto dos estorninhos. Volto a contemplar o mar com olhos novos.

Tudo me parece fácil. Qualquer coisa que faça, por mais banal que seja, dá-me prazer. Entrei num estado de consciência surpreendente. (...) Se tivesse de me definir numa palavra, diria: efervescente. Sim, é assim que me sinto desde que te conheci. Ajudaste a simplificar a minha alma. Tudo o que me deste fez o meu coração transbordar de prazer. Fizeste-me sentir uma fadiga de amor desconhecida. Devo parecer-te um homem estranho, dado que não procurei em ti o teu corpo, embora tenhas sentido bem a loucura que a tua presença provoca na minha pele. Existe tanta sensualidade em cada poro do teu ser, que me acorrentei ao teu corpo sem ainda me ter esvaziado nele.

(...) O meu coração e a minha razão não se pôem de acordo. (...) quando regresso ao quotidiano e à rotina dos meus dias, levantam-se como muros todos os meus impedimentos. Olho para a minha mulher e sei que ela não teve culpa das minhas frustrações, mas assim como contigo me sinto fluído, com ela ainda não posso abordar as minhas verdades. Sei que um dia esses muros acabarão por desmoronar. Só te peço tempo e fé, poderás dar-mos?

Minha amada criança. Nestes longos dias de espesso silêncio, os teus olhos guiaram-me com a sua luz, iluminando as minhas trevas. A tua sombra, colada ao meu corpo, acompanhou os meus suores. Não deixei de estar em ti um único instante. Penso que do mais dissonante silêncio pode brotar a música mais bela. Sinto que esta separação me fez tomar plena consciência do que pode ser querer ou amar. No querer há ânsias e desejos. No amar, apenas o desejo do bem à pessoa amada.

Agora já sei que, se não te tivesse, continuaria a amar-te. Porque o amor não pode ser posse. Verifiquei-o ao ter-te sem te ter. Acima de tudo, quero que saibas que te amo, assim, sem mais nada. Mas, como simples mortal, também quero que saibas que te desejo com toda a minha alma. Tiraste-me o medo de viver. Não sei o que nos espera, mas sinto que contigo vou começar de novo uma caminhada mais plena e intensa. Agora já sei que tenho uma alma. Tu revelaste-a perante os meus olhos; reconhecendo a tua, descobri a minha.(...) 


Vem, aproxima-te mais para te tocar a alma. (...)

Ângela Becerra in Amores Negados


[2011/12/27]




Merry Christmas - Coldplay


Lembro-me de correr as escadas desgovernadamente na manhã daquele 25 de Dezembro de um qualquer ano de finais dos setenta. O salão da casa que nos havia sido cedida pelos patrões emigrados de uns familiares, parecia aos meus olhos o salão de um palácio real. Era como viver uma vida de princesa na personagem da gata borralheira. O fausto do ambiente, a grandeza da casa, eram facilmente realçados pelo frigorífico que era nossa pertença e onde cabiam quase todos os nossos bens, bem como todos os nossos sonhos. 
Bom, na realidade, como criança que era, eu tinha sempre a capacidade de sonhar sempre um pouco mais além. Este é o primeiro Natal que as minhas memórias longínquas registam.
Que bom que é ser uma criança no Natal. Ser simplesmente criança, poder pedir do fundo coração aquilo que mais se deseja, quando o que mais se deseja é ter o que quer que seja embrulhado debaixo da mágica árvore de Natal, junto ao sapatinho que havia sido estrategicamente colocado ali para o efeito.
Ser criança no Natal é não sentir culpa por se desejar ter algo que é impossível ter. Ser criança no Natal é poder sonhar e criar um breve momento de ilusionismo. É, ao mesmo tempo, oferecer ao adulto que cuida, que cria, que ama, a sensação de realização, ao ficar-se feliz por desembrulhar uma boneca de pano, quando nos sonhos mais íntimos se desejou ter aquela boneca que nunca se viu a não ser, precisamente, nos nossos sonhos mais íntimos.
Quando cheguei ao fundo das escadas, parei extasiada pelo que acontecia debaixo da árvore de Natal. A minha memória não registou mais nada daquele cenário a não ser a árvore, os presentes e eu. E é assim que gosto de recordar, sem culpas, porque as crianças nunca serão demasiado crescidas para sonhar com presentes debaixo da árvore de Natal, as crianças nunca serão demasiado crescidas para perceberem se aquilo que mais desejam é visto como materialismo, porque sempre no fundo do coração de uma criança, um desejo é apenas um desejo, um sonho é apenas um sonho e cabe àqueles que lhes cuidam, que lhes amam, serem a balança que regula a sensatez.
Hoje é diferente, hoje estou do outro lado. Hoje sei que o desejo mais intimo da minha cria não pode ser embrulhado e colocado debaixo da árvore de Natal, por muito dinheiro que houvesse. Nos Natais de hoje é impossível não viver uma culpa, mas é gratificante ver como uma criança é sempre uma criança e fica sempre tão feliz com o que quer que seja que esteja embrulhado debaixo da árvore de Natal...


[2011/12/25]

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O Tatuagens deseja a quem vai passando, mais ou menos silenciosamente, e a quem vai deixando o seu contributo de maneira a que este seja um lugar cada vez mais marcado na minha alma, um Feliz Natal.
Que no meio das tormentas reencontremos neste Natal as verdadeiras essências. 

Obrigada a todos e até já...

[2011/12/24]


A piece for you - Meaghan Smith

Gosto de manter aberta a janela da Esperança. 
Não é de forma alguma uma ilusão camuflada, não é um capricho e tão pouco é uma mania. 
Prefiro pensar sempre que quando as janelas estão abertas o ar se renova, as essências perduram e as futilidades saem voando. 
Tudo o que de facto me é importante fica sempre retido em mim, mesmo se a janela está aberta, e mesmo o que, em liberdade, decidiu partir e voar, acaba sempre por regressar quanto mais não seja porque vive dentro de mim. Talvez porque um dia lhe tenha dado Esperança, a janela aberta permite que essa Esperança a mim retorne, sempre de forma livre e com uma vontade renascida de voar cada vez mais alto.
Não existe o frio a entrar na janela da Esperança, não existe o breu lá fora. A janela da Esperança é sempre virada para a Primavera da vida, mesmo sob a tempestade mais violenta. 
Só assim conseguimos sentir o calor que nos corre nas veias a cada Esperança concretizada, ou o frio na barriga pela ansiedade da Esperança. Só assim conseguimos os aromas perfeitos da Esperança revisitada.
A minha janela aberta para o mundo da Esperança já viu gente partir e gente chegar. Um dia, pela minha janela aberta entrará quem queira não mais sair. 
Nesse dia a Esperança renova-se, mas a janela manter-se-à sempre aberta...

[2011/12/22]

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13:30


Chico Buarque - Pedaço de mim

São milhares de gestos que se consomem,
saliva e hormonas que se revolvem,
num único e insano momento de glória,
quando os nossos corpos em sintonia se envolvem,
e de tudo o que vem à minha memória,
não posso jamais esquecer,
que o vôo mais alto foi ao teu lado,
o bater de coração mais acelerado,
a emoção mais forte,
as lágrimas mais deliciosas,
os frios e os medos, dores e felicidades,
tudo, mas tudo, tem outro sabor,
um sabor especial e único,
sabor a intensidade, sabor a eternidade,
sabor a nosso-estranho-amor... partilhado.
Loucura, simplesmente...

[2011/12/21]
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(...)
Não quero sugar todo seu leite
Nem quero você enfeite do meu ser
Apenas te peço que respeite
O meu louco querer
Não importa com quem você se deite
Que você se deleite seja com quem for
Apenas te peço que aceite
O meu estranho amor
(...)
Teu corpo combina com meu jeito
Nós dois fomos feitos muito pra nós dois
Não valem dramáticos efeitos
Mas o que está depois
(...)

[2011/12/20]


Imagem daqui
Paula Oliveira & Bernardo Moreira - Estrela da Tarde

Um dia vou...

... deixar de ter uma questão com esta expressão! Hoje é o dia!

Vejo esta expressão à luz das minhas experiências pessoais, mas tenho, definitivamente, que alargar os meus horizontes. Assim como os actos, também as palavas ficam com quem as profere, as intenções da mesma forma, podem não passar disso, as palavras podem ser apenas palavras também, uma simples junção de letras. Eu gosto das palavras com acção. Aquelas que nos levam nas suas asas mas que se concretizam, produzindo felicidade. Prefiro que se calem as palavras que são apenas palavras, e que dancem comigo aquelas que têm por detrás o fundamento, o objectivo concreto e principalmente a intenção verdadeira de concretização. Essas, ainda que de facto nunca venham a passar de palavras, não perderam o seu significado, não foram vãs.

Um dia escrevi assim:


Sempre quis escrever, um dia.Um dia... tudo!

Frase repetida incontáveis vezes, em jeito de promessa não prometida, na segurança de um não ter de cumprir.
Um dia, expressão que dá vida à Esperança e alimenta a vontade de ser persistente, ou que simplesmente encaro como uma fuga para a frente, vivendo o momento e me abstraindo de que o um dia pode nunca vir a acontecer porque, simplesmente, um dia já não estarei aqui, um dia, tudo muda, tudo passa... fica o amargo de um dia não ter sido o próprio dia.
Porque vivemos uma vida em busca de algo ou alguém e quando encontramos nos acossamos com medo? Medo de quê? De sermos felizes?
Este é o momento em que eu sei que existo porque daqui a nada tudo pode simplesmente acabar.
Sei ser feliz nos momentos próprios não permitindo que a tristeza me enuble o pensamento, e sei que um dia, ela partirá, assim como num outro dia, regressará para me acolher no seu colo, quando em mim já não caiba ser feliz.
Eu quero acreditar que um dia alguém me vai entender e querer comigo fazer de um dia, todos os dias.
Para quê protelar o sentido da vida sem viver o válido de todos os dias...
Um dia, eu escrevo...


Este foi o dia! Peguei nas minhas memórias mais doídas e escrevi aquilo que um dia eu sempre quis. Escrever que me libertei de um bloqueio emocional. Mais que escrever, porque de intenções já estamos cheios, ultrapassei efectivamente o meu bloqueio. Voltarei a utilizar a expressão um dia, com a tão pouca regularidade que já me era habitual, mas deixarei de bloquear quando alguém me disser: Um dia vamos, um dia tudo... 
Continuar a acreditar é o meu propósito, aí  eu não falho.

Respirar fundo, e dar o primeiro passo: Acção!

Escrito para a Fábrica de Histórias incluindo um texto escrito em 2011/05/06

[2011/12/18]

23:25




Sara Tavares - Um ponto de luz


Hoje gritam-me todas as paredes da minha vida, as reais e as erguidas.
O espelho reflecte os teus contornos acariciando a minha face. És tu, ali.
Quando me olho volto a encontrar-te em mim, talvez porque as lágrimas choraram de novo a saudade.
Ou talvez porque a pele voltou a ouvir a tua voz que me envolveu num aconchego quente. Lá fora está frio.
Não são as lâmpadas, inexistentes agora, que me dão calor.
Aquecem-me as lembranças e as luzes que piscam na árvore de Natal.
Aquecem-me as músicas que volto a cantar e as notas que se soltam das tuas mãos.
Pensas em mim? O teu pensamento também me aquece.
Quisera me aquecessem as tuas palavras, a tua pele, as tuas mãos,
as tuas gargalhadas, as tuas histórias, a tua essência...
O tapete vermelho despido do teu corpo não é nada, não é sequer loucura já.
Sufoca-me a loucura que contenho nos gritos que não grito,
e sufoca-me o silêncio que transcende a minha existência.
Hoje, sorri de novo por nos lembrar, foi verdade, tudo foi verdade, só posso sorrir.
Fechei os olhos e vi todos os sonhos acordados dentro de mim.
Abri os olhos e senti que não sei viver sem ti,
mas que vou viver por ti e vou viver por mim.
Guarda-me nesse lugar, não digas nada,
mas guarda-me onde fomos mais intensamente um do outro...

tu sabes onde... Amo.te


"É errado pensar que o amor vem do companheirismo de longo tempo ou do cortejo perseverante. O amor é filho da afinidade espiritual e a menos que esta afinidade seja criada em um instante, ela não será criada em anos, ou mesmo em gerações."
Khalil Gibran

[2011/12/13]

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(...) 

I'm not drowning just a litle dizzy
floating with you seems to be so easy
so come on you better act fast, or swim slow.

Winter's coming to this town
and my pool is closing down, for you.

On the surface it looks bright and clear
but deep down there's room for all my fears
melting slowly, as you go
I'm not waiting for another swimmer
life's an ocean for a diving dreamer
so come on you better act fast, or swim slow.

(...)
[2011/12/10]




 "Não percam de vista a esperança mas mantenham os pés no chão"




Sara era uma entusiasta recém licenciada professora. Tinha finalmente cumprido o seu sonho de menina, desde os tempos em que brincava às escolas com os seus primos. Como era a mais velha, calhava-lhe sempre o papel da professora, e ela encarava o seu papel muito a sério. Hoje, atirando a sua capa, repleta de fitas, ao ar, sentia bem dentro de si que, agora sim, a sua missão iria começar.
Era com alguma mágoa e tristeza que observava os jovens da sua idade, alguns mais velhos e outros mais novos, e a forma como eles cometiam atentados persistentes à língua portuguesa, que ela considerava um dos maiores patrimónios que ainda restavam.
Estava decidida a fazer o que estivesse ao seu alcance para defender a língua portuguesa dos terroristas modernos, nascidos, quase todos, da era internáutica. Para ela, que tinha baseado o seu trabalho de fim de curso nesta particularidade dos tempos modernos, era claro que esta tendência para desconstruir a nossa língua e espoliá-la do que de mais profundo e intenso a veste, tinha tudo a ver com a internet, e a necessidade cada vez mais premente, quase fervente, da rapidez de contacto. Uma quase loucura na forma como se quer fazer chegar ao outro, ainda que distante, o que quer que seja. Então vieram as substituições de alguns conjuntos de letras pelos K, ou pelos X. Estas são talvez as mais evidentes. 
Para Sara, não seria, de todo, um problema que se usassem este tipo de métodos para comunicar por telemóvel ou internet, desde que primeiro se assegurasse de que quem os utiliza sabe como de facto se escrevem as palavras e não corressem o risco, e para ela a vergonha, de ir para um teste escrever assim também. Havia que incutir nas gerações mais novas a necessidade de saberem discernir em que contextos podiam utilizar as diversas formas de expressão e, preferencialmente, sem maltratar a nossa língua. Calão sempre existiu, não é por aí, mas criem-se raízes de amor à nossa língua nos jovens. Para além de tudo o mais, a Sociedade corria o sério risco de se tornar uma sociedade composta por eremitas que já não tinham capacidade de interagir a não ser através de um teclado ou de um ecrã, fosse ele de um PC, de um IPad, de uma tablet, de um telemóvel, enfim... de um sem fim de novas tecnologias colocadas ao dispôs dos mais novos em catadupa e num tão curto espaço de tempo. 
Era por tudo isto que Sara já tinha planeado, em conjunto com mais dois colegas da faculdade que com ela hoje comemoravam a vitória na primeira caminhada em direcção ao fim maior: Defender a língua portuguesa, formarem uma Associação. Assim, a par da sua já mais que importante missão de ensinar nas salas de aula, promoveriam a defesa da língua mãe organizando eventos relacionados com escrita, leitura, de uma forma que os participantes mal se aperceberiam do que realmente estava por detrás de todos aqueles desafios. Esta associação era vocacionada para todos os jovens entre os 10 e os 20 anos. Era esta a faixa etária que corria um maior risco de vir a não saber utilizar a língua portuguesa da melhor forma.
Naquela tarde de fim de agosto, tinham combinado o encontro numa agradável esplanada para ultimarem os preparativos para o inicio do ano lectivo. O colégio onde trabalhavam e que agrupava todos os níveis de ensino num espaço enorme e bem cuidado tinha acedido a que a Associação se sediasse numa das salas disponíveis e sem utilização. Era ouro sobre azul. Assim poderiam criar actividades transversais a várias idades que competiriam entre si. Não seria de todo agradável para um aluno do 12º ano ser batido por um do 6º, certamente e este tipo de disputa saudável em torno de um bem comum fazia todo o sentido e iria atrair cada vez mais participantes.
A divulgação iria ser feita através de e-mail a todos os encarregados de educação, mas também pelos próprios organizadores que tentariam durante as aulas de apresentação assediar os alunos a inscreverem-se. Nada se pagava mas pretendia-se que o retorno fosse um imenso orgulho no nosso português. 
Sara estava numa dessa aulas de apresentação, com alunos do 7º ano. Depois de esclarecer de que se tratava a Associação, uma aluna, Clara de seu nome, perguntou: 
- E qual o nome da Associação? 
- Em defesa da Língua Portuguesa - respondeu-lhe Sara, sorrindo.
- Boa s'tora. buéda fixe.  
A professora fez-lhe um ar consternado e disse:
- Parece que temos a primeira associada desta iniciativa, já que tão bem representa aquilo que não se pretende, e piscou-lhe o olho - a turma riu.


Em Defesa da Língua Portuguesa -  Entrada livre a todos os que admiram aquela que Fernando Pessoa tão bem descrevia como Pátria:

(...) Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa.

Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Vol.I. Fernando Pessoa. (Recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1982.


Escrito para: Fábrica de Histórias
[2011/12/08]
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(...)
E a calma a aguardar lugar em mim
O desejo a contar segundo o fim.
Foi num ar que te deu
E o teu canto mudou
E o teu corpo do meu
Uma trança arrancou
O sangue arrefeceu
E o meu pé aterrou
Minha voz sussurrou
O meu sonho morreu 
(...)

[2011/12/05]




Neh Nah Nah Nah - Vaya con dios


Se há coisas de que eu gosto nesta vida uma delas é, sem dúvida, viajar. Viajar é, ao mesmo tempo, uma imensidão de aprendizagens, uma aculturação constante e um divertimento sem comparação. Não gosto de viajar sozinha, mas por circunstâncias da vida, as últimas viagens que fiz fui acompanhada apenas por mim própria e por todos os "Eus" que cabem dentro de mim.
Na minha última viagem a Paris vivi uma situação inusitada. Hoje quando penso nela ainda sorrio.
Conheci Jaques num bar na Boulevard Saint German, onde trabalhava como entertainer fazendo stand-up-comedy em versão francesa, o que só por si parece ser algo muito estranho. O meu parco francês era suficiente para ir percebendo as piadolas que ia debitando para gáudio de quem o ouvia. Não podia negar, Jaques tinha bastante piada naquilo que fazia. Durante um dos intervalos da actuação e ao ver-me no bar sozinha, aproximou-se sorrindo, confesso que tinha um ar cómico e muito pouco credível, e perguntou-me se eu dançava. Bom, eu entrei no espírito da coisa e lá lhe respondi no meu francês fraquinho fraquinho que dançar eu até dançava, se houvesse música. Abanou a cabeça e estendeu-me a mão dizendo que não era necessária música e ainda não sei bem onde estava com a cabeça ou se era a sangria a falar sozinha, lá lhe entreguei a minha mão e começámos a dançar uma música que simplesmente não tocava. Nada mais dissemos e quando chegou a hora de voltar ao palco, Jaques devolveu-me ao lugar por preencher no bar e lá foi, piscando-me o olho. 
Aquele episódio foi ao mesmo tempo estranho e especial. Fui para o Hotel naquela noite com o Jaques no pensamento. Dormi o sono dos justos e despreocupados e no dia seguinte tinha planeado ir à Place du Tertre. Tinham-me falado imenso desta Praça lá no topo pertinho do Sacré Coeur, em Montmartre. Ali se juntam os artistas para pintar e exibir as suas obras, aproveitando-se do facto de ser ponto turístico para inflacionarem o valor das obras. 
Vesti o meu melhor espírito de turista e resolvi que subiria Montmartre a pé desde o Moulin Rouge. A meio do caminho tive de parar para tentar perceber se estava a ver bem, seria mesmo Jaques? Chamei-o, mas ele pareceu não ouvir. Voltei a tentar, desta vez ao mesmo tempo que lhe tocava no ombro. Ele virou-se e olhou-me como se nunca me tivesse visto. Sorri, mas a expressão dele manteve-se inalterável. Primeiro achei que ele estava a brincar, mas depois percebi que não, de facto o Jaques não me estava a reconhecer e pareceu até estar a ficar já meio zangado e aborrecido com a minha abordagem, mesmo depois de eu lhe ter explicado entre gestos e palavras que era a pessoa com quem ele tinha dançado no Bar da Boulevard Saint German. Frio, o olhar daquele homem era completamente frio. Resolvi desistir  e continuar o meu percurso, mas já sem a animação de antes. Percorri a Place du Tertre e misturei-me com os artistas, fazendo perguntas e dando o meu parecer, do mais puro sentir que me suscitavam as telas. Depois da volta completa dirigi-me ao Sacré Coeur. Cá em baixo onde começa a escadaria via-se um personagem envolto em arranjos florais imensos e eu nem queria acreditar: Jaques.
Por momentos achei que estaria a ficar maluca, e que a sangria do dia anterior me tivesse deixado meio alucinada. Discuti comigo própria se havia de me dirigir ao terceiro Jaques que encontrava em dois dias mas acabei por decidir visitar primeiro a Basílica, quem sabe me iluminasse aquele contacto com o divino. Ainda voltei a espreitar aquela espécie de mendigo mas segui o meu caminho. Estava decidido, à noite voltaria ao bar e tiraria todas as minhas dúvidas.
Assim foi, saí do Hotel e enfiei-me no Metro. Não gostava sinceramente de andar de Metro, mas era a melhor forma de chegar ao bar. Ainda era cedo e estava muito pouca gente. Também não via Jaques em lado algum. Perguntei ao empregado do bar se haveria stand-up naquela noite ao que ele me respondeu que sim. Sorri e pedi um daiquiri. o bar ia-se compondo e Jaques surge então em palco.Tinha uma aura sobre si e todo ele era energia pura e gargalhadas sem fim. Naquela noite, mais que na anterior, estava cheio de piada, humor inteligente que encantava o público. Fiquei à espera sem qualquer certeza comigo, mas cheia de esperança de desvendar aquele mistério. Como que ouvindo o meu apelo interior, Jaques veio no intervalo ter comigo e fez a mesma pergunta do dia anterior. 
- Dança? Mas desta vez a resposta foi outra: 
- Dançar eu danço, mesmo sem música, mas antes disso explica-me. Ele olhou-me, intrigado e perguntou: 
- Explico-te? O quê? Porque quero dançar contigo?
- Não, porque fingiste não me conhecer em Montmartre e como chegaste tão rápido à escadaria do Sacré Coeur? - Naquele momento Jaques olhava para mim como se eu viesse do espaço, mostrando uma expressão muito engraçada de tão estranha.
- Mas que dizes, não estive nesse sítios, não hoje! - Mas parou ali mesmo e desatou a rir à gargalhada.
- Humm, qual foi a parte da minha pergunta que teve assim tanta piada?
- Ele chorava já e disse-me: Estou a ver que te cruzaste com os meus irmãos.
- Os teus irmãos?
- Sim, gémeos - e continuava rindo.
Corei, tenho a certeza de que corei, estendi-lhe a minha mão e disse: - Porque esperas? Leva-me a dançar esta música que não toca.




[2011/12/04]
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